LITERATURA

Blade Runner X Neuromancer: Filosofia e Conflito Cyberpunk

O que acontece quando personagens que vivem no limite entre o sistema e a rebeldia se deparam com as suas próprias amarras? Em Blade Runner X Neuromancer, o autor estabelece uma comparação entre essas duas obras. O foco nas duas figuras emblemáticas da cultura cyberpunk, Rachael e Molly, reflete a luta do indivíduo contra as redes institucionais.

Inspirado pelo conceito de “rede” (ou “grade”) de Franz Hinkelammert, este artigo explora como essas personagens — uma agindo e outra se curvando — representam visões distintas do confronto com o sistema opressor.

Já vimos, em outra ocasião, nesta revista, como o filósofo alemão Franz Hinkelammert elaborou um modelo conceitual da nossa existência em sociedade como uma rede, ou então como um sistema de redes, em que todos nós estabelecemos relações com os nossos semelhantes e com as instituições. Assim, nós, seres humanos, movemo-nos constantemente por entre as malhas dessa teia, para nos manter, sendo o nosso papel o de atores sociais.

Importante é dizer que a nossa necessidade de estar em ação contínua para satisfazer as exigências sociais e institucionais que permeiam a nossa existência na rede pode, eventualmente, levar à situação de nos sentirmos como que esmagados pelo sistema, quando não mais nos percebemos como plenamente humanos, restando apenas como instrumentos a serviço das instituições. Parece que a nossa vida consiste somente em nós nos vendermos o tempo todo.

É exatamente essa a condição em que vivem os protagonistas da obra Neuromancer de William Gibson, lançada nos anos 1980, mas que permanece atual até hoje. A dupla formada pelos personagens Case — um hacker de 24 anos, que vive de espoliar virtualmente as grandes corporações a mando de agentes de reputação duvidosa — e sua companheira Molly, uma mercenária e assassina profissional, cuja vida consiste em ser contratada para fazer serviços no mínimo estranhos.

Lendo Neuromancer com isenção, percebemos que a vida deles se passa à sombra dos trabalhos criminosos que executam, a ponto de Case ter sido sabotado fisicamente, para que seu contratante misterioso se certifique de que ele não tentará fugir às ordens recebidas.

Os dois parceiros estão mais do que capacitados para cumprir as atividades ilegais propostas — é verdade que sempre com algum risco de vida, como não podia deixar de ser! — e assim o fazem. Mas, por essa condição de atores sociais que se movimentam no interior da rede, eles não se veem como senhores de seu destino, esmagados que são pela rotina de serviços devidos à imensa grade corporativa que os cerca. Essa grade é um dos aspectos centrais da obra de Gibson e, praticamente, de toda a produção artística cyberpunk, seja ela literatura ou cinematografia.

Porém, como veremos em seguida, a situação de subserviência espiritual e física ao sistema não é a única opção que resta para o nosso estranho casal.

Focando particularmente na pessoa de Molly, ela é uma mulher jovem que ostenta um look exótico, sensual e agressivo. Muito presumivelmente dotada de treinamento militar, ela anda sempre na posse de uma poderosa “pistola de dardos”, além de carregar implantes neurais que aumentam seus reflexos na luta e imensas garras metálicas capazes de levar um agressor à morte.

Deste modo, ela não é só uma vítima, mas uma lutadora. Politicamente falando, o que mais interessa é que, ao mesmo tempo que cumpre a incumbência da corporação, essa cyber agente passa a investigar os mandantes misteriosos para quem trabalha. Ela quer saber o que faz.

Por exemplo, por ocasião de uma passagem na Turquia para efetuar certa operação secreta de rapto, Case e Molly tentam entender o que está por trás da entidade que controla a operação, o coronel Armitage. Então Molly atira uma pedrinha num lago e observa as ondas se formando. Aí ela comenta: “Esse negócio é muito grande. Nós estamos onde as ondinhas são largas demais. Não dá pra gente ver a pedra que atingiu o centro. Sabemos que tem alguma coisa ali, mas não por quê. Eu quero saber por quê”.

É nesse ponto que se torna interessante comparar essa garota cyborguizada de Neuromancer com uma personagem célebre de outra obra cyberpunk fundacional: Rachael, a competente executiva androide do filme Blade Runner.

À primeira vista, Rachael parece ser uma pessoa bem mais profunda do que sua contraparte de Neuromancer. Molly fala de si mesma como sendo “facinha”, uma pessoa prontamente disponível aos interesses das corporações que a contratam.

Entretanto, é preciso notar que onde Rachael se curva e chora, quando confrontada com sua realidade de robô a serviço de uma empresa, Molly age. Esse é o ponto crucial: Molly instaura uma inquirição paralela sobre as atividades que presta para as instituições, questionando o que faz e para quem. Ao contrário de Rachael, ela não é um instrumento dócil das grandes corporações.

É verdade que ela executa todas as determinações que recebe, mas isso ocorre porque, embora autônoma, é dependente do sistema que a sustenta e paga. Ainda assim, através da mobilização de uma rede clandestina de hackers, personagens sinistros e contatos no mercado negro, Molly investiga o que está acontecendo consigo. Ela preserva a soberania de um indivíduo que responde por si.

Para falarmos nos termos da filosofia existencialista de Sartre, Molly toma responsabilidade por sua ação. Mesmo subordinada a forças imensas, ela procura uma brecha por onde gritar contra o sistema.

Com efeito, Molly sabe que é manipulável e que habita em uma rede que condena as pessoas a fazerem o que não gostariam, sem gerar condições para que os agentes pensem nas consequências de suas ações. Contudo, dentro dos limites impostos, ela age de forma mais consciente do que Deckard, o detetive de Blade Runner. Instado pela polícia a caçar androides fugitivos, Deckard obedece integralmente, mesmo que repugne sua consciência.

Nesse sentido, Molly vai além de Rachael e Deckard: ela reage ao sistema. Molly é autônoma, uma mercenária independente, enquanto os demais se submetem sem questionar. A proposta de Gibson, portanto, é discutir aspectos políticos e apresentar uma personagem que grita contra a rede institucional. Ou, para retomar o modelo de Hinkelammert, ela é o sujeito que grita contra as amarras da rede institucional onde atua.

Embora não se possa falar de Molly como um sujeito revolucionário, ela age como alguém consciente de sua situação ambígua: servidora e manipuladora. Simultaneamente, mantém a rede que a sustenta, mas sem deixar de questioná-la. Gibson apresenta, assim, um modelo de resistência individual dentro do sistema, que contrasta com a submissão dos personagens de Blade Runner.

Para os fãs de cyberpunk, a figura de Molly em Neuromancer é um lembrete de que, mesmo em meio à opressão, ainda é possível agir contra a grade que nos aprisiona.

Imagens geradas por Inteligência Artificial

Fábio César é formado em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu. Foi repórter da Revista Sacred Sound e integrou a editoria de cultura da Revista Eclésia.

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