MÚSICA

Rush: a Ponte do Prog ao Synthwave

O legado do Rush – banda mais conhecida por seu trabalho no rock progressivo – mostra como o Synthwave é fruto de uma evolução cultural e musical mais ampla.

Em sua fase New Wave, o trio incorporou letras instigantes, muitas vezes sci-fi ou urbanas, além de elementos eletrônicos e sintetizadores que iriam dialogar com a futura estética Retrowave.

Vamos desvendar um pouco dessa conexão neste artigo.

Explorar o universo sonoro do Rush é embarcar em uma viagem pelas várias eras da música. E quando se fala da “fase New Wave” do trio canadense, marcada por sintetizadores imersivos, não há como não admitir a sua influência sobre toda uma geração de artistas e fãs — inclusive os apaixonados pelo Synthwave.

Como um “rush maníaco”, este redator vê o trabalho do grupo como um legado cultural que vai além dos limites do espaço-tempo, marcando-se como um exemplo da capacidade de criação humana.

Ressalto, também, a conexão com o movimento synthwave de nossos dias em termos de harmonias e texturas de guitarra e teclado, mas, principalmente, de construção musical. Fato que, todavia, raramente tem sido assumido pelos expoentes atuais do gênero. 

Embora seus trabalhos iniciais datem da primeira metade da década de 70, o Rush começou realmente a se consolidar com a força da sua originalidade a partir de 1976. Foi nesse ano que lançou um disco épico intitulado 2112. A longa faixa-título homônima é um bom exemplo daquilo que se convencionou chamar de rock progressivo e que se caracterizava por bandas que tocavam músicas complexas. As letras eram sofisticadas e muitas vezes se tornavam conceituais (discorrendo sobre um determinado tema).

Além disso, elas costumavam apresentar capas com um design artístico para os seus vinis.  No caso do Rush, o desenhista Hugh Syme traduziu as ideias políticas de Peart numa capa carregada de simbolismo.

Um fato interessante é que, justamente quando o Rush começava a sua carreira progressiva, o cenário do rock começava a enfrentar uma mudança radical. Por essa altura, as principais bandas de prog passaram a encarar problemas internos mais sério. Vários músicos importantes deixaram as formações, o que afetou em muito a qualidade do som. Esse foi o caso do Gênesis, por exemplo, que perdeu o seu teatral vocalista Peter Gabriel. 

Além disso, com os seus virtuosismos muitas vezes despropositados e seus egos gigantes, vários desses músicos, na ânsia por desfilar as habilidades nos instrumentos, acabaram por conduzir o gênero a certa saturação, enfraquecendo o seu ímpeto criativo.

Outros grupos, por sua vez, mergulharam numa crise de identidade, por causa da pressão das gravadoras para que tornassem os seus discos mais acessíveis, de modo a alcançar maior amplitude comercial – em uma palavra: vender mais. 

Nessa conjuntura, não seria de crer que uma banda de fora do circuito principal do rock – o eixo Inglaterra-Estados Unidos – pudesse se estabelecer na cena fazendo exatamente o som que afundava na crise. Era verdade que, em relação ao trabalho de grupos como Yes, Pink Floyd e o próprio Genesis, o Rush soava muito mais agressivo, bem mais voltado para a guitarra, abrindo desse modo uma conexão com o metal e sendo, por isso mesmo, geralmente caracterizado como um hard rock técnico. 

Dessa forma, em vez da orientação mais leve e requintada, oriunda da grande presença de teclados naquelas outras bandas, tanto a bateria explosiva de Neil Peart  quanto as guitarras épicas de Alex Lifeson, bem como os vocais invocados de Geddy Lee, junto com o seu baixo rápido e estrondoso, representaram um sopro de vida para os fãs do estilo, que começavam a ficar preocupados em ver as suas bandas de coração mudarem suas direções musicais ou até mesmo debandarem.

O que pode ter ajudado o Rush a escapar desse processo corrosivo foi a sua coesão interna como conjunto. Era o fruto de uma atitude muito profissional por parte dos integrantes. Afinal, eles não se perdiam em brigas intermináveis sobre os seus cachês, seus espaços na mídia ou as suas habilidades individuais. Na verdade, o notório refinamento instrumental dos músicos vinha entretecido na tessitura das composições, usado a favor delas. Com isso, o trio conseguiu trabalhos relevantes, os quais conseguiram atrair a atenção do público que ainda gostava do gênero. 

O Rush em ação, no Air Canada Centre em Toronto., 2010.

Além dessa crise interna ao progressivo como um todo, outro fenômeno muito mais radical chacoalhou a cena e isso de uma maneira tal que mudaria toda a história da música pop no século 20. Tratava-se da explosão do punk rock. Um movimento de jovens revoltados que, com as suas letras de protesto e a atitude iconoclasta para com a tradição, escolheu o progressivo como alvo de deboche. Dessa maneira, de uma hora para outra, muitos grupos simplesmente saíram de moda e tiveram suas turnês canceladas. A cena prog derreteu, pois as novas gerações já não se importavam tanto assim com as suítes de quinze minutos ou os arranjos intrincados. 

Contra todas as probabilidades, o Rush também sobreviveu a essa enchente. E sobreviveu bem, enchendo as suas tours pela Europa – lá, que era o centro do punk rock! Sobreviveu, é verdade, não de modo incólume, já que, pelo final da década, a pegada do grupo também começaria a amansar. Embora os teclados já fossem uma parte tímida da banda desde 2112, inicialmente ocupavam um papel secundário. No entanto, sua presença foi crescendo com o tempo na estrutura das músicas, como se vê, por exemplo em “Xanadu”. A partir dos anos 80, os teclados passaram a ser profundamente integrados à sonoridade, tornando-se uma verdadeira marca de estilo, adicionando mais atmosfera, densidade e texturas às composições.

O apogeu dessa fase de transição, em que o trio canadense gradualmente abandonou o esquema épico e furioso, são os álbuns Permanent Waves e Moving Pictures. Eu gostaria de destacar especialmente a faixa “Entre Nous”, dada a sua precocidade. Afinal, já em 1980, o Rush vinha com uma composição que ainda exibia os teclados da fase prog, com uma vibe space arrojada. Mas, concomitantemente, ela também antecipava a onda synthpop que estava em gestação na Europa, com uma canção curta, vocais melódicos, versos e refrões bem definidos.

Já os sintetizadores fornecem uma sensação de modernidade e amenidade que difere da densidade progressiva. E a forma como eles são estruturados melódica e texturalmente, em vez de meramente atmosféricos, alinha a banda com a experimentação eletrônica que caracterizava artistas como Gary Numan e Ultravox.

Por esse único exemplo, portanto, já dá para o leitor avaliar a contribuição pioneira do trio para os novos tempos que viriam. O objetivo da mudança era executar um som que, por um lado, renunciava aos modismos americanos (o hard rock glam do Mötley Crüe, as guitarras ultravelozes de Ed Van Halen e do sueco Malmsteen ou o pop dançante de Madonna e Michael Jackson). Por outro lado, buscava sua inspiração nas novas tendências que começavam a despontar na Europa após a primeira maré do punk baixar. Chegava a vez da New Wave.

Apesar de devastar a cena do rock e forçar muitas bandas a se aposentarem ou se reinventarem, o punk rock abriu espaço para que toda uma nova cena musical florescesse. Muitos grupos retornaram às raízes do rock’ n roll dos anos 50 e 60. Outros, como Simple Minds, Japan e OMD, exploraram as novas tecnologias de sintetizadores disponíveis, dando origem ao synthpop.

Nessa conjuntura, Geddy Lee ia ficando cada vez mais fascinado pelos novos grupos europeus (como o The Police). E também pelos sintetizadores, a ponto de eles rivalizarem com a sua marca registrada – o baixo – na construção das músicas. 

Nesse contexto, então, os álbuns lançados em inícios dos anos 80 tiveram um papel singular, em particular Moving Pictures. Neste trabalho, os quatro conjuntos de instrumentos – as guitarras e violões de Lifeson; as percussões e a bateria de Peart; o baixo e, ainda, os teclados de Lee – estão no ponto mais equilibrado possível, entendendo-se como um único corpo musical ao longo do trabalho.

Nos anos 80, a banda prossegue a sua orientação de priorizar os aspectos construtivos, mais do que os ostentatórios. Para tanto, os membros embutiam a sua técnica soberba na forma das músicas – na sua articulação interna. E a dupla de compositores, Lee e Lifeson, pôde responder com adequação às letras densas do baterista Neil Peart. De modo que, no fim das contas, você não terá enfadonhos solos de um instrumento, de maneira a perder a noção do conjunto estético. 

Na verdade, a técnica dos músicos não surgiu de forma acidental, como um desejo de mostrar o quanto eram fudidos. Os próprios membros da banda já deram declarações que, por serem um trio e, especialmente nos shows, haver apenas três pessoas no palco, fazia-se necessário que cada um ajudasse nas partes das músicas em que algum deles necessitasse uma cobertura extra. Assim eles não deixariam os infames “buracos” no som.

Tudo isso fez com que eles desenvolvessem um senso de coesão musical muito forte. E, ainda, a habilidade de tocar diversos instrumentos afora aquele de sua preferência, além de se servirem de recursos eletrônicos, como samplers, aqui e ali.

As linhas de baixo de Geddy Lee são uma boa amostra dessa condição integrada do Rush. Em uma clínica da revista Bass Player, é dito que… “os seus grooves são intrincados, suas linhas, muitas vezes, são executadas juntamente com a linha vocal (…) A parte rítmica também é explorada ao máximo: as notas são combinadas de forma magistral junto com a estrutura da bateria”.

A música “The Body Electric” exemplifica a notável fusão de composições polidas, instrumentação técnica e temas sci-fi. Nas letras, Peart aborda um androide em busca de autonomia, remetendo, inevitavelmente, a um filme como Blade Runner.

A mesma coisa vale em relação aos teclados. Lee logrou desenvolver extratos sônicos que multiplicavam a percepção dos arranjos e dos climas sugeridos nas letras, fornecendo ambiência, fundo e profundidade para as músicas. E Alex se valia de pedais cujos efeitos aproximavam suas guitarras ao sintetizadores. Com isso, eles ampliam a fusão de estilos, no flerte com o jazz, com o reggae e até com melodias orientais (como na suave canção “Tai Shan”). O Rush, portanto, vai se firmando como o grande representante do synth-oriented style, deste lado do Atlântico. Com isso, a banda também lega uma fonte de inspiração indireta para os futuros criadores do synthwave, com as suas “viagens” eletrônicas e seu colorido pop.

Você pode sentir essa abordagem estética consistente na música “The Camera Eye”, do citado Moving Pictures, em que Peart lança um olhar às cidades de Nova York e Londres. Os sints simulam o trânsito intenso no início; depois preparam a entrada do baixo, repetindo-se como se fossem as curvas das ruas. Em seguida,  vão se superpondo em camadas ao longo da faixa, para construir um ambiente sofisticado e elegante – mas não exagerado e nem muito veloz. O que é paradoxal, levando em conta que estamos poetizando a rotina apressada de uma metrópole e de suas multidões carrancudas. A distribuição dos temas vem sincronizada com as entradas da guitarra de Lifeson. Já o baixão imponente de Lee traduz o sentimento “esmagador” dos arranha-céus de Manhattan.

Faixas como essa capturam o meio urbano de forma quase cinematográfica, antecipando, portanto, em termos sonoros os elementos poéticos e visuais que moldam o Synthwave. É aqui que o Rush deixa a sua marca como uma ponte entre o rock progressivo e o tom sintético que viria a dominar a estética retrofuturista.

Com efeito, nada é mais urbano, nada é mais hard … nada é mais synthwave – mesmo que em 1981!

Como se vê, o Rush não apenas flertou com o futurismo, mas ajudou a moldar os alicerces de uma tecno-estética que o Synthwave posteriormente adotaria. As texturas criadas por Geddy Lee em seus teclados e sintetizadores, além da escolha por Neil Peart de temas contemporâneos, como inteligência artificial, distopias e questionamentos existenciais, ecoam na narrativa de uma geração que cresceu fascinada pela ideia de um futuro tecnocrático.

Essa ligação não é meramente sonora, mas também conceitual. Pois tanto o o trio canadense quanto o Synthwave traduzem uma visão do futuro que reflete os anseios e os temores dos anos 80, mas que hoje são reinterpretados sob o prisma da nostalgia contemporânea. Assim, o Rush não é apenas uma inspiração; é uma peça fundamental na transição de uma sensibilidade musical para um movimento cultural maior. Parafraseando o seu famoso álbum de 1975: Voe pela Noite! …

Dessa forma, podemos dizer que o legado do Rush transcende o rock progressivo. Tornou-se, ao longo dos tempos, um pilar na construção do imaginário retrofuturista celebrado atualmente pela geração retrowave.

https://rushfaclubebr.blogspot.com/2006/01/the-body-electric.html

Foto do cabeçalho: Vtpeters at English Wikipedia, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons

Foto do meio: Clalansingh, CC BY 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by/3.0, via Wikimedia Commons

Fábio César é formado em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu. Foi repórter da Revista Sacred Sound e integrou a editoria de cultura da Revista Eclésia.

Um comentário sobre “Rush: a Ponte do Prog ao Synthwave

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *